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sábado, 16 de novembro de 2013

Janela do Tempo - DOIS TEMPOS

DOIS TEMPOS

Educador Glauco César
                          

        









         

                    

          Mariaaana! Se avexa que a Canarinha vai levantar a taça! É hoje que seremos campeões!... (Berra Seu Bastião Orelhudo), Vem, ligá meu rádio ABC, novinho em folha!    


     
                  
                    - Marê, estava envolvida no labor de todos os dias, enxugou suas mãos no avental, uma vez que acabara de lavar os cacarecos do almoço e, arrastando seu tamanco, um calçado muito grosseiro de madeira de mulungu, um lenho branco-amarelado, muito poroso, a correia do tamanco, era entrançada, feita da fibra do caroá tingido de cores, ela foi prontamente atender seu marido!

              - Tá azafamado homem? Tem calma, vai te pacientar!
        - A mulher falou assim, pois, estava com a responsabilidade de cuidar, justo de dois amiguinhos, Graveto e Salta Caminho, que lhes abarrotavam de perguntas curiosas!
            - Virgem, e tem um besoiro dentro do rádio, é Orelhudo?
                    - Eita, mulé besta, tô vendo que tu não entende de tecnologia, isto é a válvula, esquentando, ‘as dispois,’ o homem começa a falar de dentro do ‘bicho’!
               O bom homem, ainda arrotando o “cumê” do almoço, bofava o ar com o cheiro do pirão de bode, preparado com esmero pela sua esposa Marê! Ele, então retruca: - Oxente, mulé! Ocê num sabe que é hoje o jogo finá? Lá no Maracanaço vamo metê uma enxurrada de gols no ‘fracote do timeco’ do Uruguai!
              - Toma cuidado, criatura da cabeça dura, Deus escreve certo com linhas tortas!
                       - Virgem, mulé, ta azarando é?
                     Vamos, já passa duas horas do meio-dia, e aqui no meu rádio ABC – A Voz de Ouro, tá dizendo que a decisão começa às duas horas e cinquenta minutos!
                     Ademais, nós vamos ganhá sim, pois, metemos sete e só tomamos um da Suécia e na Espanha fizemos seis e sofremos só um!
                       - Sei não, só sei que o jogo só se acaba quando termina! E ainda nem começou, quem morre de véspera é peru! (retruca Marê)
                  - Morre nada! O dia do peru morrer é justamente, no dia anterior da festa! Além disso, a gente só perde essa, se for mesmo castigo!
         Portanto, prepara a festança, ‘prumode’ a gente comemorá!
                 Anote aí, o dia dezesseis de julho de mil novecentos e cinquenta vai ficar gravado na história como o dia mais feliz do Brasil!
                 Manda os meninos parar com a azafamação, pois, o jogo começou! A gente pode dar até o empate de lambuja, mesmo assim a taça é nossa, mas, nós vamos ganhá fácil, fácil!
                - Com o correr do tempo Seu Bastião ficou de orelha levantada e meio acafifado, o que provocou essa melindra foi que terminou o primeiro tempo, e nada de nadica de gol!
                - Reage homem, é só o Brasil fazer o primeiro, então a porteira se abre totalmente!
                 - Que os deuses do futebol te ouçam!
                 - Come umas guloseimas e esse mal-estar passa!
                 - E passou mesmo!
                Mal o jogo teve início no segundo tempo, o locutor, aquele homem de dentro do rádio, começou a se empolgar dizendo: - Ataque fulminante do Brasil, Zizinho toca para Friaça na ponta direita, que recebe o balão de couro nas costas de Andrade, em total impedimento, sai na cara do gol, tá na banheira, o bandeirinha marca impedimento, o juiz nada marca, mais Friaça marca o gol, ele tocou na direita de Máspole, e é..... gooooooool do Brasil!!!
         - Nesse momento a casa de Orelhudo virou uma desordem total, todos pulavam e gritavam!
              O homem deixou de roer as unhas e abraçou a mulher lembrando que, a partir de então, a porteira estaria aberta e esse seria apenas o primeiro pingo da chuva de gols que o Brasil imporia na frasqueira do Uruguai!
               Contudo, ‘nem tudo são flores’, existe ‘o dia do caçador e o dia da caça!’
              Esse, indubitavelmente era o dia da caça, mas, Orelhudo nem suspeitava disso!
                    Sua alegria durou apenas alguns minutos, o que não se esperava aconteceu!
                    O homem do ‘ABC’ boquiaberto e bestificado, com a voz embotada, descreve para todo o Brasil o gol de empate!
                  Orelhudo estava com as ‘oiças’ atentas e ouvia o que não queria ouvir: - O Maracanã, conjuntamente a todo o Brasil, está vivenciando há exatos vinte e um minutos, uma extrema alegria... Olha! Cuidado com esse homem... Varela lança o balão de couro para Ghiggaia na ponta direita, Bigode, nosso lateral-esquerdo, ‘dança feito confeito na boca de velha’, Varela cruza à meia altura, Juan Alberto Schiaffino, tenta emendar de primeira na direita de Barbosa e para nossa alegria erra, ufa!  Esperem!!! Não posso crer! Schiaffino pegou mal na bola, que espirra à direita do goleiro brasileiro, a pelota de couro vai morrer mansamente nas redes da meta brasileira, é gol do Uruguai, o jogo está empatado! O Maracanã está em mórbido silêncio, com esse gol do Uruguai o riso do povo brasileiro transmuda-se em pranto!
                    Mas não é o fim, com o empate o Brasil ainda assim está de posse da taça de campeão! Não podemos nos abalar, a Copa do Mundo será nossa, vamos em frente Brasil!
                     - A voz do narrador estava embotada, o Brasil inteiro chorava a queda de sua cidadela, aquele gol solitário estorvou a felicidade de toda a nação brasileira, e abalou a estrutura da nossa imbatível seleção!
                   Bastião Orelhudo ficou de cabeça inchada, se apegou à santa padroeira do futebol, esperando que acontecesse um milagre, que não veio!
                           Parece mesmo que Bastião pisou em rastro de chifrudo, pois, o Uruguai passou a dominar o jogo, Orelhudo atento aos acontecimentos passou a ouvir o locutor: - O Uruguai pressiona pela ponta direita, Júlio Perez e Ghiggaia tabelam, envolvem Bigode nosso lateral esquerdo, que não sabe a quem marcar. Perez lança para o ponta uruguaio que passa de passagem por Bigode e, aparece na cara de Barbosa nosso golquíper, este se agiganta  na frente de Alcides Ghiggaia que vê uma brecha entre o goleiro e a trave esquerda, a bola passa rasteira, queimando a grama, é gol uruguaio que marca seu segundo tento, virando o jogo!
                  - Bastião não diz uma única palavra, levanta-se, coça a cabeça, dá um pigarro, senta, levanta-se outra vez, faz menção de que não gosta do que está ouvindo, dá um beliscão no seu próprio braço, deixa escapar um gemido de dor, percebe que não é um pesadelo e, acorda para a realidade!
              Então, como se estivesse delirando, um pouco avariado, começa a interagir com o locutor do rádio ABC perguntando com firmeza irracional: - Diga, quantos minutos faltam para eu empatar e virar esse jogo? Eu não quero saber se o Uruguai está mandando no jogo, eu estou mandando você dizer quantos minutos me restam para eu botar essa bola no filó, e poder gritar com todas as forças de minha goela, goooooool do Brasil!!! Gol do Brasil, do Brasil, do Bra.....
                 - Tenha calma, Bastião, acorda pra Jesus Cristo! Veja, eu sou sua esposa, a Seleção está perdendo, contudo, os dias continuam!
                  - Orelhudo, se situa no resultado do jogo e ouve, para seu desespero as últimas palavras do locutor do rádio: - Às dezesseis horas e cinquenta  minutos o Árbitro apita o final do jogo. Os uruguaios pulam de alegria, se abraçam e dão cambalhotas, exteriorizado intensa euforia... Os jogadores brasileiros choram lágrimas de pavor, com os olhos vermelhos, os rostos desfigurados e, deprimidos de vergonha descem para o vestuário.
                   O Maracanã passou a ser o palco de tristeza de um povo sofrido, achocalhado e abatido, contudo respeitam os Campeões do Mundo, a Seleção Celeste que está postada no centro do gramado com camisetas azuis e meias e calções negros...
               - Com determinação e muito vigor, Bastião, puxando pelo fio, desconecta o rádio desligando-o, o mesmo fez um chiado, foi perdendo a voz e calou-se, tempo em que Orelhudo desabafa: - Nunca mais vou ficar alegre, nem sequer esboçar um sorriso!
              - Por alguns instantes a casa ficou sepulcralmente silenciosa!  O momento era de intensa reflexão, aquele estado de letargia cavernosa, aos poucos foi perdendo sua força e sua indiferença!...
                  Para acabar de vez com o abatimento moral e físico que Bastião Orelhudo se encontrava, aparece, como que do nada, Salta Caminho, implorando para o abatido homem prestar atenção na história de Graveto!
                Bastião respirou fundo e, por fim concordou: - Tá bem! Desembucha o que você tem pra contar! 
              - Um pouco sem jeito, Graveto meio desconfiado mais, inteiramente convicto do que ia falar, chegou perto de Bastião, convidou-o a ir com ele até junto à parede que fazia divisa entre o alpendre e o interior da casa!
                  Foi justo neste espaço coberto, reentrante e, aberto na fachada da casa, que dá acesso ao interior, que Graveto, como que estivesse desvendando um grande segredo olha fixamente para Bastião e, desvia o olhar para a parede, aponta para uma lagartixa, também conhecida na região norte como osga, que é um réptil com dedos providos de lâminas transversais, adesivas, que lhes permitem subir em paredes lisas!
                  Graveto matutou, parafusou uma maneira de como falar, então, começou a desembuchar toda sua experiência: - Tião, você sabia que eu, semelhante a uma osga, poderia andar numa parede lisa?
               - Você quer dizer como lagartixa, sem escorregar nem cair?
                     - Isso mesmo, Orelhudo!
                     - Você pode me mostrar como faz isso?
                     - Claro!
                 - Naquele instante Graveto fixa com firmeza sua mão esquerda numa parte alta da parede revestida de azulejo, um ladrilho vidrado, branco e, desembuça: - Veja que minha mão não escorrega, não é verdade, Seu Orelhudo?
                       - Com certeza, sua mão está bastante firmada!
                  - Veja agora, vou colocar também a minha mão direita e ela vai ficar sem escorregar! Agora vou fazer o mesmo com o meu pé direito, ainda assim, não escorrega nenhuma de minhas mãos nem o meu pé direito! Isto não é fantástico?
                   Pois bem, só uma coisa me deixa cabreiro, veja agora o que acontece quando eu coloco o pé esquerdo na parede, na mesma altura do pé direito!
                         - Coitado de Graveto, estatelou-se no chão!
                        - Que nada, sou muito atilado e posso mostrar a minha esperteza, basta eu cortar o meu pé esquerdo, e andarei em qualquer parede lisa! Como você vê, os outros três membros ficaram fixos na parede, só o pé esquerdo é quem atrapalhou, então, sem ele, andarei na parede, semelhante a uma lagartixa!
                   - Nesse instante, Bastião Orelhudo, que momentos antes, houvera afirmado que nunca mais sorriria, esboçou de forma rudimentar uma leve descontração facial!
                   Ainda um pouco irritadiço e bastante constrangido em face da recente derrota do Escrete Canarinho, Orelhudo, para dar continuidade ao seu processo de desopilação resolveu fazer algumas flexões que o ajudaria a esquecer a derrota brasileira, bem como manteria o seu bom condicionamento físico!
               Salta Caminho, como um anjo da guarda acompanha Orelhudo e convida Graveto a seguir a mesma direção dele!
                 Os dois meninos confabulavam alguma coisa que era de interesse só deles! Bastião, ainda absorto, concentrado em seus próprios pensamentos, não prestava atenção na conversa das crianças!
        Parecia que nada incomodava Orelhudo! Maquinalmente ele retira sua camiseta e fica só de calça curta e entufada que ia desde a cintura até aos joelhos!
                 Encontrou uma prancha de madeira que estava apoiada num batente, deitou-se sobre a mesma e, pediu para Salta Caminho segurar seus pés, para evitar qualquer movimento dos mesmos, então começou a fazer flexões, querendo trabalhar o abdômen!
                      Concentrado em seus pensamentos ele estava, de fato, alheado, pois, na medida em que assobiava uma música saudosa, contava a quantidade de suas flexões: - um, dois, três...
                   - Naquele instante foi interrompido sumariamente por Graveto que faz uma curiosa pergunta: - Que cicatriz é essa em sua barriga?
               - Antes de responder a interrogação Bastião vasculha em sua mente à maneira mais correta de responder aquela pergunta, para que a mesma ficasse simples e de fácil compreensão para o raciocínio infantil!
        Decide, então, comparar com algo que já fosse de domínio intelectivo do pirralho!
               - Pois bem, lembra-se que sua mãe, recentemente, esteve prenha, de bucho, sua barriga foi pejando, cada vez mais enchendo, pois, ela estava carregando um organismo humano em desenvolvimento em sua barriga?
              - Sim, lembro-me, até perguntei para papai o que tinha na barriga de mamãe, e ele disse que era água, então eu perguntei se o bebê não morria afogado! Papai ficou com melindre, meio sem jeito e bastante afetado!
                 - Isso mesmo, ao terminar o período de gestação, sua mãe foi para a maternidade, setor do hospital para mulheres no período de gravidez, lá ela fez um parto cesáreo, o médico parteiro cortou a barriga e retirou o nenê lá de dentro, nascendo assim, seu irmãozinho!
            Algo semelhante aconteceu comigo, eu estava sofrendo de apendicite, uma inflamação do apêndice e necessitava tirar o treco para aliviar a minha dor.
              Fui então, para o hospital fazer uma intervenção cirúrgica, onde o médico através dessa operação extraiu o apêndice, assim, adquiri esta cicatriz na barriga!
                    - Sobre o hospital, entendi tudo, tintim por tintim, com todas as particularidades, só não entendi tudo, ponto por ponto, por não saber o que é apêndice!
                  - Com a fisionomia um pouco gozosa, Orelhudo se apressa em esclarecer! – Apêndice é um órgão humano, que no meu caso, estava com deficiência, como que quebrado e precisava ser retirado rapidamente para eu não continuar sofrendo! Espero que você, agora, tenha entendido tudo minuciosamente!
                  - Como Graveto gostava muito de músicas religiosas e, na igreja se deliciava com as melodias executadas no órgão, também conhecido por harmônio, saiu com essa preciosidade: - Ufa! Ainda bem que foi só um órgão, pior seria se fosse um piano!....                 
                  Neste instante, Orelhudo não se conteve e, deu uma gozosa e descontraída risada!...

9 comentários:

  1. Pai!! Muita engraçado este causo! lembro desses dois acontecimentos, tanto da lagartixa quanto do piano. hahahah Gostei muito de todo o escrito, a forma de escrever, a linguagem, tudo.
    parabéns!!


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    1. É sempre bom receber uma massagem no ego, principalmente vindo de um virtuoso como você, não pelo motivo de ser meu filho, mas, sobretudo por ter sido o pivô dessa historieta, que se encontra relatada no meu livro HISMALTADAS, Histórias Mal Contadas! Sou muito grato pelo comentário!

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  2. Estarei colando alguns comentários de alguns leitores, feitos no face!
    Ermamblique Batista Gonçalves por isso devemos relembrar..viver é bom demais!

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  3. Muito bom!!! a forma que você representou o discurso direto está genial! texto muito bom e engraçado! rsrs.
    parabéns

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    1. Sendo filho de quem você é e, por ter herdado todas as virtudes de teu pai, só me resta agradecer por todas as palavras elogiosas que você grafou, ao tempo em que retiro o chapéu para você!

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  4. Lindo! Além disso, também muito engraçado. Bela maneira de narrar. Parabéns, mais uma vez! Abraços.

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    1. Obrigado minha amiga Rosinete, espero que você se delicie com os textos desse singelo blog!

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  5. Papai, lembro-me bem... ainda bem que não foi um piano!!!

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  6. Minha filha querida, é sempre bom tê-la perto de mim! Leu também o outro texto? Gostaria de desejar a você e toda sua família um feliz natal, com muito amor e ternura, e que o ano novo seja apenas 365 dias de realizações! Amo-te!

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