DOIS TEMPOS
Educador Glauco César
Mariaaana! Se avexa que a Canarinha vai levantar a taça! É hoje que seremos campeões!... (Berra Seu Bastião Orelhudo), Vem, ligá meu rádio ABC, novinho em folha!
- Marê, estava envolvida no labor de todos os dias, enxugou suas mãos no avental, uma vez que acabara de lavar os cacarecos do almoço e, arrastando seu tamanco, um calçado muito grosseiro de madeira de mulungu, um lenho branco-amarelado, muito poroso, a correia do tamanco, era entrançada, feita da fibra do caroá tingido de cores, ela foi prontamente atender seu marido!
- Tá
azafamado homem? Tem calma, vai te pacientar!
- A
mulher falou assim, pois, estava com a responsabilidade de cuidar, justo de
dois amiguinhos, Graveto e Salta Caminho, que lhes abarrotavam de perguntas
curiosas!
- Virgem,
e tem um besoiro dentro do rádio, é Orelhudo?
- Eita,
mulé besta, tô vendo que tu não entende de tecnologia, isto é a válvula,
esquentando, ‘as dispois,’ o homem começa a falar de dentro do ‘bicho’!
O bom
homem, ainda arrotando o “cumê” do almoço, bofava o ar com o cheiro do pirão de
bode, preparado com esmero pela sua esposa Marê! Ele, então retruca: - Oxente,
mulé! Ocê num sabe que é hoje o jogo finá? Lá no Maracanaço vamo metê uma enxurrada
de gols no ‘fracote do timeco’ do Uruguai!
- Toma
cuidado, criatura da cabeça dura, Deus escreve certo com linhas tortas!
- Virgem,
mulé, ta azarando é?
Vamos, já
passa duas horas do meio-dia, e aqui no meu rádio ABC – A Voz de Ouro, tá dizendo que a decisão começa às duas horas e cinquenta minutos!
Ademais, nós
vamos ganhá sim, pois, metemos sete e só tomamos um da Suécia e na Espanha
fizemos seis e sofremos só um!
- Sei
não, só sei que o jogo só se acaba quando termina! E ainda nem começou, quem
morre de véspera é peru! (retruca Marê)
- Morre
nada! O dia do peru morrer é justamente, no dia anterior da festa! Além
disso, a gente só perde essa, se for mesmo castigo!
Portanto,
prepara a festança, ‘prumode’ a gente comemorá!
Anote aí,
o dia dezesseis de julho de mil novecentos e cinquenta vai ficar gravado na história
como o dia mais feliz do Brasil!
Manda os
meninos parar com a azafamação, pois, o jogo começou! A gente pode dar até o
empate de lambuja, mesmo assim a taça é nossa, mas, nós vamos ganhá fácil,
fácil!
- Com o
correr do tempo Seu Bastião ficou de orelha levantada e meio acafifado, o que
provocou essa melindra foi que terminou o primeiro tempo, e nada de nadica de
gol!
- Reage
homem, é só o Brasil fazer o primeiro, então a porteira se abre totalmente!
- Que os
deuses do futebol te ouçam!
- Come
umas guloseimas e esse mal-estar passa!
- E
passou mesmo!
Mal o
jogo teve início no segundo tempo, o locutor, aquele homem de dentro do rádio,
começou a se empolgar dizendo: - Ataque fulminante do Brasil, Zizinho toca para
Friaça na ponta direita, que recebe o balão de couro nas costas de Andrade, em
total impedimento, sai na cara do gol, tá na banheira, o bandeirinha marca
impedimento, o juiz nada marca, mais Friaça marca o gol, ele tocou na direita
de Máspole, e é..... gooooooool do Brasil!!!
- Nesse
momento a casa de Orelhudo virou uma desordem total, todos pulavam e gritavam!
O homem
deixou de roer as unhas e abraçou a mulher lembrando que, a partir de então, a porteira estaria aberta e esse seria
apenas o primeiro pingo da chuva de gols que o Brasil imporia na frasqueira do
Uruguai!
Contudo, ‘nem
tudo são flores’, existe ‘o dia do caçador e o dia da caça!’
Esse,
indubitavelmente era o dia da caça, mas, Orelhudo nem suspeitava disso!
Sua
alegria durou apenas alguns minutos, o que não se esperava aconteceu!
O homem
do ‘ABC’ boquiaberto e bestificado, com a voz embotada, descreve para todo o
Brasil o gol de empate!
Orelhudo
estava com as ‘oiças’ atentas e ouvia o que não queria ouvir: - O Maracanã, conjuntamente
a todo o Brasil, está vivenciando há exatos vinte e um minutos, uma extrema
alegria... Olha! Cuidado com esse homem... Varela lança o balão de couro para
Ghiggaia na ponta direita, Bigode, nosso lateral-esquerdo, ‘dança feito
confeito na boca de velha’, Varela cruza à meia altura, Juan Alberto
Schiaffino, tenta emendar de primeira na direita de Barbosa e para nossa
alegria erra, ufa! Esperem!!! Não posso
crer! Schiaffino pegou mal na bola, que espirra à direita do goleiro
brasileiro, a pelota de couro vai morrer mansamente nas redes da meta
brasileira, é gol do Uruguai, o jogo está empatado! O Maracanã está em mórbido
silêncio, com esse gol do Uruguai o riso do povo brasileiro transmuda-se em
pranto!
Mas não é
o fim, com o empate o Brasil ainda assim está de posse da taça de campeão! Não
podemos nos abalar, a Copa do Mundo será nossa, vamos em frente Brasil!
- A voz
do narrador estava embotada, o Brasil inteiro chorava a queda de sua cidadela,
aquele gol solitário estorvou a felicidade de toda a nação brasileira, e abalou
a estrutura da nossa imbatível seleção!
Bastião
Orelhudo ficou de cabeça inchada, se apegou à santa padroeira do futebol,
esperando que acontecesse um milagre, que não veio!
Parece
mesmo que Bastião pisou em rastro de chifrudo, pois, o Uruguai passou a dominar
o jogo, Orelhudo atento aos acontecimentos passou a ouvir o locutor: - O
Uruguai pressiona pela ponta direita, Júlio Perez e Ghiggaia tabelam, envolvem
Bigode nosso lateral esquerdo, que não sabe a quem marcar. Perez lança para o
ponta uruguaio que passa de passagem por Bigode e, aparece na cara de Barbosa
nosso golquíper, este se agiganta na
frente de Alcides Ghiggaia que vê uma brecha entre o goleiro e a trave
esquerda, a bola passa rasteira, queimando a grama, é gol uruguaio que marca
seu segundo tento, virando o jogo!
- Bastião
não diz uma única palavra, levanta-se, coça a cabeça, dá um pigarro, senta,
levanta-se outra vez, faz menção de que não gosta do que está ouvindo, dá um
beliscão no seu próprio braço, deixa escapar um gemido de dor, percebe que não
é um pesadelo e, acorda para a realidade!
Então,
como se estivesse delirando, um pouco avariado, começa a interagir com o
locutor do rádio ABC perguntando com firmeza irracional: - Diga, quantos
minutos faltam para eu empatar e virar esse jogo? Eu não quero saber se o
Uruguai está mandando no jogo, eu estou mandando você dizer quantos minutos me
restam para eu botar essa bola no filó, e poder gritar com todas as forças de
minha goela, goooooool do Brasil!!! Gol do Brasil, do Brasil, do Bra.....
- Tenha
calma, Bastião, acorda pra Jesus Cristo! Veja, eu sou sua esposa, a Seleção
está perdendo, contudo, os dias continuam!
-
Orelhudo, se situa no resultado do jogo e ouve, para seu desespero as últimas
palavras do locutor do rádio: - Às dezesseis horas e cinquenta minutos o Árbitro apita o final do jogo. Os
uruguaios pulam de alegria, se abraçam e dão cambalhotas, exteriorizado intensa
euforia... Os jogadores brasileiros choram lágrimas de pavor, com os olhos
vermelhos, os rostos desfigurados e, deprimidos de vergonha descem para o
vestuário.
O
Maracanã passou a ser o palco de tristeza de um povo sofrido, achocalhado e
abatido, contudo respeitam os Campeões do Mundo, a Seleção Celeste que está
postada no centro do gramado com camisetas azuis e meias e calções negros...
- Com determinação e muito vigor, Bastião,
puxando pelo fio, desconecta o rádio desligando-o, o mesmo fez um chiado, foi
perdendo a voz e calou-se, tempo em que Orelhudo desabafa: - Nunca
mais vou ficar alegre, nem sequer esboçar um sorriso!
- Por
alguns instantes a casa ficou sepulcralmente silenciosa! O momento era de intensa reflexão, aquele
estado de letargia cavernosa, aos poucos foi perdendo sua força e sua
indiferença!...
Para
acabar de vez com o abatimento moral e físico que Bastião Orelhudo se
encontrava, aparece, como que do nada, Salta Caminho, implorando para o abatido
homem prestar atenção na história de Graveto!
Bastião
respirou fundo e, por fim concordou: - Tá bem! Desembucha o que você tem pra
contar!
- Um
pouco sem jeito, Graveto meio desconfiado mais, inteiramente convicto do que ia
falar, chegou perto de Bastião, convidou-o a ir com ele até junto à parede que
fazia divisa entre o alpendre e o interior da casa!
Foi justo
neste espaço coberto, reentrante e, aberto na fachada da casa, que dá acesso ao
interior, que Graveto, como que estivesse desvendando um grande segredo olha
fixamente para Bastião e, desvia o olhar para a parede, aponta para uma
lagartixa, também conhecida na região norte como osga, que é um réptil com
dedos providos de lâminas transversais, adesivas, que lhes permitem subir em
paredes lisas!
Graveto
matutou, parafusou uma maneira de como falar, então, começou a desembuchar toda
sua experiência: - Tião, você sabia que eu, semelhante a uma osga, poderia
andar numa parede lisa?
- Você
quer dizer como lagartixa, sem escorregar nem cair?
- Isso
mesmo, Orelhudo!
- Você
pode me mostrar como faz isso?
- Claro!
- Naquele
instante Graveto fixa com firmeza sua mão esquerda numa parte alta da parede
revestida de azulejo, um ladrilho vidrado, branco e, desembuça: - Veja que
minha mão não escorrega, não é verdade, Seu Orelhudo?
- Com
certeza, sua mão está bastante firmada!
- Veja
agora, vou colocar também a minha mão direita e ela vai ficar sem escorregar!
Agora vou fazer o mesmo com o meu pé direito, ainda assim, não escorrega
nenhuma de minhas mãos nem o meu pé direito! Isto não é fantástico?
Pois bem,
só uma coisa me deixa cabreiro, veja agora o que acontece quando eu coloco o pé
esquerdo na parede, na mesma altura do pé direito!
- Coitado
de Graveto, estatelou-se no chão!
- Que
nada, sou muito atilado e posso mostrar a minha esperteza, basta eu cortar o
meu pé esquerdo, e andarei em qualquer parede lisa! Como você vê, os outros
três membros ficaram fixos na parede, só o pé esquerdo é quem atrapalhou, então,
sem ele, andarei na parede, semelhante a uma lagartixa!
- Nesse
instante, Bastião Orelhudo, que momentos antes, houvera afirmado que nunca mais
sorriria, esboçou de forma rudimentar uma leve descontração facial!
Ainda um
pouco irritadiço e bastante constrangido em face da recente derrota do Escrete
Canarinho, Orelhudo, para dar continuidade ao seu processo de desopilação
resolveu fazer algumas flexões que o ajudaria a esquecer a derrota brasileira,
bem como manteria o seu bom condicionamento físico!
Salta
Caminho, como um anjo da guarda acompanha Orelhudo e convida Graveto a seguir a
mesma direção dele!
Os dois
meninos confabulavam alguma coisa que era de interesse só deles! Bastião, ainda
absorto, concentrado em seus próprios pensamentos, não prestava atenção na
conversa das crianças!
Parecia
que nada incomodava Orelhudo! Maquinalmente ele retira sua camiseta e fica só
de calça curta e entufada que ia desde a cintura até aos joelhos!
Encontrou
uma prancha de madeira que estava apoiada num batente, deitou-se sobre a mesma
e, pediu para Salta Caminho segurar seus pés, para evitar qualquer movimento
dos mesmos, então começou a fazer flexões, querendo trabalhar o abdômen!
Concentrado
em seus pensamentos ele estava, de fato, alheado, pois, na medida em que assobiava
uma música saudosa, contava a quantidade de suas flexões: - um, dois, três...
- Naquele
instante foi interrompido sumariamente por Graveto que faz uma curiosa
pergunta: - Que cicatriz é essa em sua barriga?
- Antes
de responder a interrogação Bastião vasculha em sua mente à maneira mais
correta de responder aquela pergunta, para que a mesma ficasse simples e de
fácil compreensão para o raciocínio infantil!
Decide,
então, comparar com algo que já fosse de domínio intelectivo do pirralho!
- Pois
bem, lembra-se que sua mãe, recentemente, esteve prenha, de bucho, sua barriga
foi pejando, cada vez mais enchendo, pois, ela estava carregando um organismo humano em desenvolvimento em
sua barriga?
- Sim,
lembro-me, até perguntei para papai o que tinha na barriga de mamãe, e ele
disse que era água, então eu perguntei se o bebê não morria afogado! Papai
ficou com melindre, meio sem jeito e bastante afetado!
- Isso
mesmo, ao terminar o período de gestação, sua mãe foi para a maternidade, setor
do hospital para mulheres no período de gravidez, lá ela fez um parto cesáreo,
o médico parteiro cortou a barriga e retirou o nenê lá de dentro, nascendo
assim, seu irmãozinho!
Algo
semelhante aconteceu comigo, eu estava sofrendo de apendicite, uma inflamação
do apêndice e necessitava tirar o treco para aliviar a minha dor.
Fui então,
para o hospital fazer uma intervenção cirúrgica, onde o médico através dessa
operação extraiu o apêndice, assim, adquiri esta cicatriz na barriga!
- Sobre o
hospital, entendi tudo, tintim por tintim, com todas as particularidades, só não
entendi tudo, ponto por ponto, por não saber o que é apêndice!
- Com a
fisionomia um pouco gozosa, Orelhudo se apressa em esclarecer! – Apêndice é um órgão
humano, que no meu caso, estava com deficiência, como que quebrado e precisava
ser retirado rapidamente para eu não continuar sofrendo! Espero que você,
agora, tenha entendido tudo minuciosamente!
- Como Graveto gostava muito de músicas religiosas e, na igreja se deliciava com as melodias
executadas no órgão, também conhecido por harmônio, saiu com essa preciosidade:
- Ufa! Ainda bem que foi só um órgão, pior seria se fosse um piano!....
Neste
instante, Orelhudo não se conteve e, deu uma gozosa e descontraída risada!...